11 julho, 2012

Fazer-cracia, hackers, contracultura da ciência, against method e os anônimos


Dois congressos científicos e umas reflexões.

Recentemente participei de dois eventos científicos: um mais “normal” e um pouco mais alternativo. Entre os pesquisadores desse segundo evento tinham hackers e ativistas pró-liberdade de expressão, pró-privacidade, feministas, etc. O primeiro evento (aquele mais normal) não vale a pena comentar, todo mundo conhece.

Mas o choque entre os 2 eventos científicos me levou a reflexões e cá estou escrevinhando.

O Simpósio Internacional de Tecnopolítica

Num primeiro momento, a “estética” me impressionou. Cheguei lá e vi uma galera bem diferente do que se esperaria de um "Simpósio Internacional”. Mais que isso: um Simpósio Internacional na USP. Calça larga, tatoos, chapéus, camiseta cavada. Sei lá, todo um visual um pouco diferente daquele congresso que tinha ido pouco tempo atrás.

Anyway.. começaram as mesas redondas, palestras, apresentações. Fiquei deveras impressionado com algumas das tecnologias a que fui apresentado. Mas, mais do que isso, fiquei curioso quanto ao método científico empregado. Já chego no método, antes vou dar uma pincelada em umas coisas tecnológicas que vi no evento.

Tecnologias alternativas

Bem por cima, algumas coisinhas que me chamaram a atenção. Não vou ficar nos detalhes técnicos, e vou apenas citar alguns resultados.
  • Tem uns caras que conseguem subir um servidor que, num raio de 5 km, provê telefonia celular (incluindo dados) pra quem está dentro dessa área. Isso usando aparelhos de celular normais mesmo, e sem pagar nenhuma conta. Pra uma potência que cubra esses 5 km, basta uma célula fotoelétrica carregando o dia todo. Ou seja, se alguém derrubar a Internet e a energia elétrica por algum motivo qualquer, ainda é possível continuar em rede por um tempo, enquanto durarem as baterias dos celulares e notebooks, ao menos. E se um desses aparelhos conectados na rede conseguir acesso à Internet de alguma forma, ele pode servir de gateway e conectar todos.
  • Esse projeto acima age num raio pequeno. Mesmo porque “a princípio”, para uma área grande, seriam necessários satélites. Maaas, “a principio” (as aspas tinham um motivo) precisaríamos de satélites. Na falta de satélites, estão pesquisando ondas curtas, de modo que o sinal bate na ionosfera e volta (a ionosfera fazendo o papel de satélite, e essa ainda não é controlada por ninguém). Como os radinhos de antigamente. Daria, por exemplo, pra conectar algumas daquelas células de 5 km entre si fazendo uma rede maior. Já está em teste uma conexão do Brasil com a Argentina, transmitindo dados. Ainda devagar, mas bem utilizável. A ideia é que funcione bem ainda esse ano. Depois isso pode ir se expandindo pra conectar outros países.

  •  Quanto à privacidade, tinha uma galera da França mostrando um Sistema Operacional chamado Tails. Você grava ele num cd ou pen drive e reinicia o micro micro a partir dele. Dai utiliza o micro incógnito. Não ficam rastros, nem na máquina utilizada nem na rede, de que alguém utilizou aquele micro. Ou quanto a que sites foram acessados, ou histórico de navegação, ou cookies de identificação, enfim...

  • Se você não for tão paranoico a ponto de usar todo um Sistema Operacional, tem uma rede “paralela” à Internet chamada Tor, ela te deixa navegar pela internet incógnito também. Basta baixar um browser (aparentemente um Firefox modificado) do site deles que já funciona de cara.
  • Outro dia li na BBC que o pessoal do Pirate Bay tá com uns planos pra colocar seus servidores no ar, literalmente: os servidores ficariam em pequenos aviões autônonomos pra dificultar ataques e apreensões. Isso aliado a nova forma de trabalhar com torrents de forma distribuida já em funcionamento (os Magnet Links), deixará o serviço bastante difícil de parar.
Bom, por ai vai... Muita coisa bacana acontecendo. Rádio digital, rádios comunitárias e o escambau. E muita coisa não bacana, como uns dados que vi sobre apreensões de servidores de núcleos de mídia independente acontecendo pelo mundo. Muitos no Brasil, aliás. Uma coisa legal é que respondendo a uma pergunta, na mesa redonda de encerramento do período da manhã, foi meio que consenso entre os palestrantes que ninguém fica sabendo tanto disso tudo porque não faz parte da filosofia deles ficar aliciando pessoas. Tipo quem quiser usa, quem quiser ajudar ajuda, os sites tão lá e os grupos físicos/presenciais. Mas como no geral as pessoas não vêm as questões da privacidade ou da contracultura como necessárias, não são eles (esses ativistas) que vão tentar evangelizar elas.

Ahh, sim... e os "anais" do simpósio eram escritos coletivamente, sem censura, e anonimamente, durante as apresentações. Tanto por quem estava assistindo presencialmente com os notebooks e tablets, quanto por quem estava de fora via streaming, de vários lugares do mundo.

O método, ou será o “against method”?

Agora. Além dessa parte de resultados, o que também me impressionou nesse contato foi o método.

A ciência, strictu sensu, é mais ou menos baseada na proposição de uma teoria que por sua vez tem uma base acadêmica Essa teoria é testada em laboratório sob condições controladas, e se mostra verdadeira ou falsa. Os resultados são empacotados em artigos seguindo regras normativas bem fechadinhas e se forem aprovados pelos editores das publicações especializadas em seu blind review (tenho minhas dúvidas se ele é tão cego assim), passam a constar como referência e embasamento teórico pra alguém que começa tudo de novo. Saindo algo lucrativo uma empresa copia (ou paga os direitos de uma patente) e cria algo em escala. Esses laboratórios controlados onde se testa a proposição teórica normalmente pressupõem organização, métodos, controle (ah vá) e... limpeza.

Já os laboratórios (se é que se pode chamar assim) e descobertas dessa “contracultura científica” (to ficando puto com esse termo, mas não consigo pensar em algo melhor) são baseados em pessoas interessadas que se dispõem a tentarem fazer algo. O foco está num objetivo e não em uma teoria. Principalmente quando esse objetivo é fazer algo que alguém disse que é impossível ou que não é permitido. Isso é feito diretamente no mundo real (sem ambiente controlado) e sob condições reais. Sem limpeza, organização ou outros aspectos muito “autoritários” e “sanitários”. Os protótipos de hardware impressionaram mais do que os de software porque com uma certa frequência são trambolhos feitos com peças coletadas e soldas “de fundo de quintal”, bem estilo filme de ficção de sessão da tarde da década de 80 (lembram do “Academia de gênios?”). A divulgação também é meio underground (olha o chavão de novo), muito mais baseada em redes próprias de informação do que em revistas tradicionais. Essas redes me lembram os antigos fanzines, embora baseadas na net. Ainda se usa muito IRC pra conversar...


Claro que um conhecimento teórico da ciência tradicional existe nesses pesquisadores. Como um cara teria a ideia de enviar ondas curtas pra se refletirem na ionosfera, ou de usar software defined radio para demodular uma onda eletromagnética e com isso fazer uma base de telefonia celular, sem conhecimento de eletromagnetismo, por exemplo? Mas o método, a filosofia e os objetivos a mim pareceram bem distintos.

Disseram-me (de novo meus amigos sociólogos, claro) que isso tem um pouco a ver com o “Against The Method”, um livro de 1975 de um tal de Feyerabend, mas ainda não tive disponibilidade de ler.


Os anônimos e a faça-cracia

Isso tudo me lembrou dos tais dos anônimos... Recentemente li uma matéria (que recomendo) sobre eles e o autor da matéria (Quinn Norton escrevendo pela Wired) chamou a forma de organização deles de “do-ocracy”, que eu tô traduzindo livremente pra faça-cracia. Na qual a liderança e coordenação são dadas pelo exemplo. Alguém vai e faz, outros seguem... ou não. No caso dos anon acho que isso é diferente da “meritocracia” comum nas comunidades de Open Source ou Wikipedias da vida, porque não sobra mérito de fato pra uma pessoa. As decisões e ações são por definição e por concepção anônimas, então o mérito vai pra um ente quase místico que é esse nome, Anônimos, cujo rosto é a máscara do Guy Fawkes, e que pode ser usada por qualquer um a qualquer momento. O lema deles, “we are legion” vem bem a calhar, afinal.

Bem louca a história desse movimento também, né? Pra quem não conhece, vai um resumão da história deles:

- Em teoria começa com uma sala de bate papo com imagens e... hmmm... anônima na qual tudo é permitido (a 4Chan),

- Esse ambiente com tudo permitido, e ainda por cima anônimo, junta um grupo de párias (ia usar o termo Misfit do inglês aqui, mas pária foi o melhor que achei pra mesma ideia. É bom?) e assusta a maioria das pessoas “de bem”. Muito palavrão e pornografia inclusive.

- Começam a se especializar em zuar todo mundo, LULZ, memes, Rick Rolls, etc.

- Um belo dia, em 2008, eles sacaneiam a Cientologia e o Tom Cruise

- A Cientologia revida tentando censurar o fórum.

- A galerinha das imagens sem censura e das zuações fica emputecida e resolve atacar a tal da igreja da cientologia. Fazem a primeira “operação”, a tal da “Project Chanology” pra aloprar com eles. Se organizam de maneira caótica, ou melhor, usando a fazer-cracia.

- Muita gente perguntava se o objetivo era atacar a igreja de fato ou se estavam apenas zuando. A chave é que a resposta é sim pras duas questões.

- Eles viram que teve repercussão, teve algum efeito no mundo real. Foi mais do que zuar e dar risada. Provavelmente aqui eles experimentaram o gostinho da revolução e dai foi difícil esquecer. Começaram a brigar pela bandeira da privacidade e da não censura.

- Começaram a aparecer nas ruas, fisicamente, representados pela máscara branca.

- Em 2010 tentaram prender eles, daí nova grande operação foi lançada, a OpPayback, ou, “Payback (Is a Bitch)”.

- Defenderam o Wikileaks com os ataques à Visa, Mastercard e etc.

- Tô com preguiça... então vai um monte de coisa incompleta aqui nesse penúltimo item: resolveram ajudar na liberação da Tunisia com o #optunisia, depois essa operação se quebrou em várias outras chamadas de FreedomOps, vários foram presos pelo FBI, quebraram-se em grupos mais radicais como o LulzSec e o AntiSec e com isso quebraram Sony e meio mundo, voltaram a ser um grupo só, ajudaram no Occupy Wall Street, bla bla bla...

- Hoje, enquanto escrevo, estão se movimentando em duas frentes pelo visto. Uma por uma banda punk que está sendo acusada por falar umas coisas num show. E outra frente, maior, contra uma tal tentativa, na Europa, de catalogar informações sobre raça, credo, opinião política e orientação sexual das pessoas para fins de censo.

Enfim, falei um monte de coisa do tipo “eles fizeram isso”, “eles fizeram aquilo”, mas o mais louco disso tudo é que não existem “eles”. Qualquer um pode ser um anônimo, e ninguém o é. As movimentações são quase anárquicas, surgem do nada e desaparecem da mesma forma, em várias contas de twitter gerenciadas por várias pessoas ou em salas anônimas de IRC. Se prende um representante, outros aparecem. Não há uma centralização a ser destruída pra assim afetar o resto. E uma proposta de ação (como essas duas de hoje) pode ter seguidores ou não, por definição ninguém sabe. Muito provavelmente as pessoas iniciais do movimento nem estão mais lá, vai saber.

Isso também é um tanto novo, né?

Ou não?

Ou na verdade tudo isso ai é carne de vaca, sem motivo de destaque, e eu que tava desligado demais? 

Diga-se de passagem, falando assim resumido sobre os eventos corro o risco de aparentemente supervalorizar a participação dos grupos em alguns eventos. Claro que tem muitos fatores a mais envolvidos e tals. Pulei também a parte das traições de uns membros junto ao FBI, e muitas outras coisas. Não dava pra escrever uma enciclopédia então foquei nas organizações e métodos que têm me chamado a atenção ultimamente. 

Tango down!