07 novembro, 2010

A Banda em Fuga!


Sim, teoricamente, eu escrevo para este blog! O Matheus me incluiu na lista dos autores, mas até hoje eu nunca havia colaborado com nada... até hoje. Não é por acaso que minha primeira contribuição seja uma aventura no campo da crítica de rock; afinal, o jornalismo musical foi meu sonho de consumo, em termos profissionais, durante boa parte da minha adolescência.

O que isso interessa? Não muito. Ainda assim, como gastei uns minutos escrevendo sobre um disco clássico do Paul McCartney, decidi subir o texto pra cá. Então, com vocês, "A Banda em Fuga". ;)


Novembro de 2010. Os beatlemaníacos estão todos eufóricos, com a proximidade dos shows do Paul McCartney no Brasil. Eu estou. Com esse clima de euforia, as reações mais típicas dos fãs, é claro, é a defesa da importância de Sir Paul McCartney (ou, para quem é fã de verdade, me disseram, apenas “Paul”) para a música pop do século XX. Membro de uma das mais conhecidas e influentes bandas de rock de todos os tempos, compositor milionário com sucesso comercial imbatível, recordista disso e daquilo. Para seus detratores, ele é a representação encarnada de tudo que é brega e cafona. Um dinossauro, um velhote que deveria ter se aposentado há tempos.

Acho uma besteira ficar defendendo alguém que realmente não precisa da meu apoio; um atualmente ancião que já entrou para a História antes de ter a idade que eu tenho. Gostando ou não da obra dos Beatles, é preciso reconhecer que antes de fazer trinta anos, McCartney já tinha feito tudo e mais um pouco, ajudando a redefinir o rock e o pop. Portanto, sem mais comentários sobre o homem. A música é o ponto aqui.

Após o término dos Beatles, McCartney lançou alguns singles memoráveis (Maybe I’m Amazed, por exemplo) e alguns discos medianos. Os discos McCartney, de 1970, e Ram, de 71, compreensivamente pairavam em algum lugar entre o som dos Beatles e uma tentativa de encontrar uma identidade musical mais pessoal. Algo estava faltando.

Macca, então, construiu em torno de si uma nova banda, o Wings. Linda McCartney estava ali, convertida de fotógrafa de celebridades em tecladista; Denny Laine, ex-guitarrista do Moody Blues também. Em torno desse núcleo, orbitava uma formação pouco estável de músicos talentosos, mas ainda assim o conjunto todo demorou para atingir a maturidade e identidade suficientes para espantar o fantasma do Fab Four. Mesmo Live and Let Die, rockão da trilha sonora do filme homônimo da série James Bond, ainda contava com a presença do quinto Beatle George Martin na produção.

Band on the Run, disco de 1973, relançado muitas vezes e em versão remasterizada neste ano, marcou a criação de uma identidade sonora e conceitual para a nova banda de McCartney. Musicalmente, é o retrato de um McCartney seguro de sua identidade pós-Beatles. Como todo bom disco de McCartney, tem ótimas canções, apoiadas em um e outro “filler”, meio bobo e descartável. Faixas como Bluebird e Mamunia hoje soam ultrapassadas e ingênuas. Band on the Run, porém, está baseado numa trinca matadora - a faixa-título, Jet e Nineteen Hundred and Eighty Five - que por si só já valem a audição. E ainda assim, vale lembrar, o panorama formado pela conjunto e ordenação das faixas mantém uma vitalidade insuspeita.




Curiosamente, o ápice do Wings surgiu de sua desconstrução. A aura e o apelo de Band on the Run devem muito também aos curiosos detalhes de sua gravação: a banda fugiu, sim! Fugiu de Paul McCartney que excentricamente (e antecipando a febre posterior da world music?) decidiu realizar a gravação em Lagos, na Nigéria. Henry McCullough e Denny Seiwell, guitarrista-solo e baterista, não se animaram com a perspectiva da viagem africana de McCartney e, segundo a lenda, abandonaram a banda no aeroporto. Com isso, restaram Paul, Linda e Denny Laine, em uma viagem exótica para a África, com o engenheiro Geoff Emerick a tiracolo.

Os estúdios da EMI em Lagos eram precários, para dizer o mínimo. Mesas de oito canais apenas e nenhuma adaptação para a gravação dos vocais (McCatrney sempre afirma que teve que instruir a gerência do estúdio sobre o processo de construção de uma vocal booth). Se o clima não era o esperado pelos gringos - eles aportaram na Nigéria em setembro, na estação de chuvas - a recepção dos nigerianos também não foi nada calorosa: McCartney e sua trupe foram assaltados, perdendo fitas com horas e horas de gravação, e ameaçados na base da faca por músicos locais, receosos de que os ingleses fossem plagiar produções locais, sem o devido pagamento de royalties. Sem dúvidas, as circunstâncias desastrosas das gravações concedem ao produto final uma identidade comparável com outras grandes obras do rock: Sgt. Peppers, The Dark Side of the Moon (Pink Floyd), Exile on Main St. (Rolling Stones), ou o inacabado Smile (Beach Boys). Junto com a música, fica uma história.

A influência regional procurada por McCartney, no entanto, aparece apenas levemente, em faixas como Bluebird, Mamunia e Mrs. Vandebilt, carregadas de percussão. O restante do disco é tipicamente inglês, algumas vezes rock’n’roll - Let Me Roll It e No Words - e algumas vezes grandiloqüente e orquestral (destaque para a faixa final, e para as delicadas clarinetas de Picasso’s Last Words) Obviamente, as orquestrações, a cargo do tradicional parceiro de David Bowie, Tony Visconti, foram realizadas posteriormente, com a banda já de volta à Inglaterra.

Também de volta à terra da Rainha, o toque final para a criação de um disco clássico: a capa. Nela, Paul, Linda e Denny aparecem em uniformes de presidiários, iluminados como se estivessem em fuga, acompanhados de um casting de celebridades, como os atores James Coburn e Christopher Lee.

O resultado disso tudo? O disco vendeu como água e garantiu, de uma vez por todas, a identidade dos Wings como sendo não uma cópia dos Beatles, mas a nova empreitada do sabidamente egocêntrico e perfeccionista Paul McCartney. É fato que algumas das canções não envelheceram bem, mas o conjunto da obra compensa: já na abertura, com a dobradinha Band on the Run e Jet, o Wings estabelece uma gramática que segue pelo disco inteiro. Oscilando entre o acústico e percussivo, mas pegando forte nas guitarras e nos sintetizadores, Band on the Run me parece um bom retrato musical de sua época - e, desta maneira, historicamente relevante, mesmo quando ultrapassado.

Além das tradicionais e competentes linhas de baixo e solos de guitarra, McCartney demonstra como nunca sua identidade como baterista: se em Back in the USSR e Dear Prudence ele emulou Ringo Starr, em Band on the Run, os contratempos e viradas, e a ausência da presença normativa de um produtor, revelam um estilo próprio. Por fim, o já conhecido pianista McCartney ressurge com força total na última faixa do disco, Nineteen Hundred and Eighty Five. Nela, num clima proto-disco, McCartney e o Wings afastam-se, definitivamente, da idéia de um substituto incompleto dos Beatles. Band on the Run tinha vida própria.

Nos shows brasileiros do Paul, ainda que a euforia dos fãs talvez seja aplacada apenas com os sucessos dos Beatles, certamente eu vou esperar ansioso por uma, duas ou três músicas de Band on the Run, para alguns críticos (e para este crítico amador) um dos melhores discos daqueles quatro senhores que fizeram parte dos Beatles.

Jet!