Há 11 anos
13 abril, 2012
01 abril, 2012
Meus flertes com um novo tipo de heresia
A "Hora do Planeta", em Atenas
Quando escreveram sobre o Ofício do Sociólogo, Pierre Bourdieu e Jean-Claude Chamboredon conseguiram expor, de forma bastante eloquente, a necessidade da Sociologia superar o senso comum, e principalmente o senso comum sociológico. Essa tarefa é mais fácil em alguns casos, e praticamente impossível em outros. Certos assuntos são protegidos ou por uma falta de conhecimento generalizada - é difícil questionar o que não se conhece, afinal! -, ou por estarem muito protegidos por uma aura ideológica que, por definição, proíbe certos tipos de questionamentos, para evitar qualquer ataque à sua lógica interna.
Esse tipo de interdição do questionamento parece ser fundamentalmente relacionado com formas de conhecimento não-modernas (religião, por exemplo). A Ciência e as discussões políticas embasadas nela seriam, em um primeiro momento, muito mais abertas ao escrutínio e discussão sistemáticos, pois o ceticismo seria um pressuposto de sua construção. Na prática, eu creio, a conversa é outra.
O ecologismo e o ambientalismo, e as ações políticas e coletivas decorrentes deles, me parecem ser (apesar de declarações em contrário) especialmente habilidosos em jogar com modalidades não-modernas e não-científicas de construção de consensos. Os elementos morais envolvidos na ciência do aquecimento global, por exemplo, são tão visíveis que chegam a ser descarados: em certos círculos é melhor não questionar o consenso em torno do aquecimento global, sob pena de ser submetido à um doutrinamento bastante eloquente sobre a destruição apocalíptica da terra e o papel do homem em evitá-la!
(não que eu defenda o predomínio completo da Ciência e da racionalidade na vida cotidiana; o meu problema é o evidente paradoxo de um ramo do conhecimento advogar para si a neutralidade da Ciência e, ao mesmo tempo, ser tão abertamente ilógico, sectário e sustentado em auto-referências).
As semelhanças entre algumas religiões e o ecologismo de ocasião são abundantes. O elemento apocalíptico e as noções de causalidade e culpabilidade que apontam para os desastres como resultado direto de alguma violação comportamental do Homem são as facetas mais filosóficas da coisa toda. Mas o fenômeno tem também sua dimensão prática, construída silenciosamente, sem muita gente perceber!
A “Hora do Planeta” e a Sexta-feira Santa são para mim dois exemplos do mesmo fenômeno: ambos tem a função manifesta de reafirmar a adesão à certas crenças, e a função latente de reforçar a coesão social. São ritos que são conduzidos no piloto automático, muito mais como uma série de ações pré-determinadas e imprescindíveis, conduzidas de forma litúrgica, do que como uma oportunidade de reflexão verdadeira sobre os pressupostos do dia sacro-santo. Curiosamente, do meu ponto de vista agnóstico, os sermões religiosos relacionados à Páscoa parecem ter muito mais de reflexividade do que ações como a famigerada “Hora do Planeta”. (ponto para os cristãos!)
A “Hora do Planeta” baseia-se na premissa de que o ato de desligar a iluminação de monumentos e prédios públicos e de residências, durante uma hora, uma vez por ano, é um ato significativo para a conscientização sobre os problemas do uso de combustíveis fósseis (não cabe aqui discutir a total impossibilidade que seria analisar os irrisórios efeitos práticos diretos de tal ato). Do ponto de vista da coerência interna, é totalmente válido e relacionado com o “estilo de pensamento” postulante. Aliás, é o correlato funcional do ato de não comer carne na Sexta-feira Santa, para lembrar do martírio de Cristo - é um ato simbólico, com uma função doutrinária bem clara. Nesse aspecto, como não-praticamente tolerante, eu deveria me ater ao meu ceticismo e deixar cada um agir como melhor lhe aprouver.
O problema é que os ecologismos e ambientalismos são muito mais poupados do escrutínio sistematizado do que as religiões (apesar de serem, na minha opinião, assemelhados, como se fossem parentes distantes). Apesar de uma quantidade considerável de trabalhos sociológicos sobre o tema, ainda é muito difícil ultrapassar o senso comum (e o senso comum sociológico). Assim, iniciativas como a “Hora do Planeta” são vistas (mesmo pelos supostamente esclarecidos praticantes das Ciências Sociais) como ações positivas ou, na pior das hipóteses, como algo a ser ignorado. A capacidade de análise crítica sobre o tema parece ser inversamente proporcional ao apelo e penetração atual do tema em diferentes espaços sociais.
A “Hora do Planeta”, como o próprio nome indica, só é possível em um contexto de globalização - ou seja, a noção da existência de problemas globais e da necessidade de ações globais só é possível em uma sociedade que oferece as condições tecnológicas e institucionais para isso: sem as tecnologias de comunicação e as instituições e organismos “transnacionais” não existiria a noção de problema ecológico global. Não sou exatamente especialista em “globalização”, mas sei que o fenômeno tem consequências práticas, muitas delas negativas, que sequer são problematizadas em ocasiões como a “Hora do Planeta”.
Vejamos: a noção do risco de aquecimento global, quando interpretada superficialmente, dá conta que os riscos seriam divididos de modo indistinto, como se todos os povos e nações fossem igualmente afetados e, portanto, como se todos fossem igualmente responsáveis pelos efeitos negativos passados decorrentes da exploração indevida dos recursos naturais e, em especial, pela mitigação futura dos problemas e desastres relacionados. De fato, os riscos são sempre distribuídos desigualmente e os países e comunidades pobres são frequentemente mais vulneráveis ao risco. No entanto, essas nações e comunidades vulneráveis dificilmente são aquelas que contribuíram de forma direta para a produção dos riscos: um país sub-desenvolvido provavelmente possui, em toda sua história, uma pegada de carbono muito menor do que um país desenvolvido.
Assim, para além da percepção da distribuição “global” dos riscos, se procede uma incorreta distribuição da causalidade (e, portanto, culpabilidade) dos riscos. O movimento retórico é sutil, mas não é desprezável: ao pedir que todos apaguem as luzes, estamos responsabilizando em igual medida e critérios países tão distintos quanto os Estados Unidos e Angola! O “apagar das luzes” pode ser simbólico, mas a mensagem que ele passa e a cultura que ele ajuda a sustentar é absolutamente assimétrica em sua prescrição: retoricamente, exige-se dos países menos industrializados um comportamento de mitigação que os países industrializados historicamente nunca tiveram!
Isso não significa negar a “realidade” dos fenômenos de aquecimento global e similares, mas problematizar a política por detrás da percepção existente sobre eles; sobretudo, é bom lembrar que os países mais pobres são justamente aqueles que tem menos condições de lidar com os potenciais efeitos do aquecimento global, tal qual ele é entendido atualmente. Existem momentos, no entanto, que uma concepção globalizada sobre os problemas ambientais pode ser contra-produtiva. O caráter ritualístico de apagar as luzes na “Hora do Planeta” é essencialmente fetichista, sem função prática direta. Por conta disso, ele pode funcionar como uma “politização desmobilizante”: apagar as luzes torna-se um fim em si mesmo, um ato que tem início e fim demarcados e pouca conexão com o fato gerador da ação. Apagadas as luzes, os cidadãos globais lidam com o problema, para imediatamente esquecê-lo (assim como acontece com a interdição do consumo de carne na Sexta-feira Santa). Ao contrário de manifestações políticas mais tradicionais e diretas (das greves às passeatas nas ruas), onde os posicionamentos políticos são demarcados e os posicionamentos ativamente definidos, as ações como a “Hora do Planeta” esvaziam o tema de qualquer antagonismo ou conflito - o que sobra, a exemplo dos fenômenos religiosos - é uma noção de solidariedade, que em muitos casos escamoteia as tensões decorrentes da vida política. Mais do que isso, o ritual de expiação do apagar anual de luzes dá uma impressão (na maior parte dos casos, eu suponho, falsa) de comprometimento. Ao politizarmos o tema desse modo específico, estamos na verdade esvaziando seu significado: paradoxalmente, ao apagar as luzes, todos nos responsabilizamos, mas em ninguém recai a culpa.
A atribuição de culpa, fenômeno humano tão universal (Mary Douglas que me corrija), fica reservada então para a dissidência. Não agir ecologicamente hoje significa, inevitavelmente, comprometer o futuro comum. Por isso, a adesão aos cânones do ecologismo normalmente não permite muito questionamento e interpretações divergentes. É claro que o ecologista e o estudioso possuem um repertório conceitual suficientemente elaborado e amplo para expandir e até mesmo suspender a crença nos limites conceituais de sua atividade, como é esperado em uma discussão produtiva em um contexto democrático. Mas o leigo sempre vai ter acesso à versão mais estável e, portanto, mais conservadora da teoria científica. Isso, aliado aos espetáculos midiáticos como a “Hora do Planeta” produzem uma ignorância involuntária, cujos efeitos podem os mais curiosos: admita, não é preciso procurar muito para encontrar alguém que apague as luzes conforme o pedido da WWF, mas que insista em sair de carro para comprar pão! Ou pior: não são raros os indivíduos que aderem à causas globais e são completamente alheios à causas locais, ecológicas ou não, que o afetam diretamente (num desacoplamento entre tempo/espaço característicos da modernidade e suas consequências como - vejam só! - a globalização! Não é, Giddens?).
Para todos aqueles que se consideram pessoas ecologicamente conscientes, meu pedido de desculpas pelas profanidades expostas acima. Sim, eu sou um herege. Mea culpa, mea maxima culpa. Acontece que estou professando aqui meu outro credo, as Ciências Sociais, e me incomoda ver um assunto tão importante ser tratado de forma tão leviana. Não se trata apenas da “Hora do Planeta”, mas de uma postura geral sobre os problemas ambientais: atualmente, negar a ação humana como causa do aquecimento global é tão vergonhoso como negar Cristo por três vezes! Assim, meu esforço, antes de desrespeitar um tipo de pensamento, é para compreendê-lo melhor e se possível reforçar seus argumentos. Em linhas gerais, digamos que compartilho da causa, mas não das formas de mobilização adotadas. Em especial, argumento pelo meu direito de ser um dissidente em um contexto democrático, sem necessariamente ser tratado como um herege.
De qualquer forma, “folgo em saber” que ao menos não serei queimado vivo, como as bruxas e hereges de outros tempos. Afinal, todos ecologistas sabem que as fogueiras destroem madeira e aumentam os problemas com o efeito-estufa! Por outro lado, também os churrasquinhos humanos de outrora tinham funções sociais que iam muito além de acabar com o problema, em si. Assim como a “Hora do Planeta”, também serviam para conscientizar! “Ou não” ;)
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