13 abril, 2012

Dança Macabra, ou "ahhh, o terror!"

Como hoje é Sexta-feira 13,  resolvi escrever um post comemorativo. Na verdade vou requentar e reciclar um review que escrevi de um livro esses dias atrás pra uma lista de e-mails da qual participo... Bora lá!
No final de semana passado, na páscoa, comecei a ler o livro "Dança Macabra" uma não ficção do Stephen King sobre terror. Mais especificamente sobre o gênero terror, como apresentado na literatura, rádio, tv e cinema. Assim como o resto da bibliografia do King, o livro é irregular; com algumas coisas interessantes e outras nem tanto. Mas no geral o saldo é positivo (e não tem como negar que ele tem um vasto conhecimento na área, quer seja como leitor, escritor ou professor universitário). Ao falar sobre o gênero terror, ele acaba mostrando muito da cultura americana e suas raízes também, uma vez que ele contextualiza sua gerarão (que eles chama de "filhos da guerra") e o que eles pensavam, que tipo de educação tinham, pra chegar em como os filmes o afetavam.

Apesar de ser (como é explicitamente assumido no livro) uma simplificação muito grande, ele começa por discutir 3 obras que seriam a "Santíssima Trindade" (trocadilho meu) do terror, e depois expande. Ainda não cheguei na parte que ele discute o radio, peguei literatura e parte do cinema até o momento. Mas vamos às três obras da Santíssima Trindade da literatura de terror...
Frankenstein
Representando o "monstro". Deformado fisicamente, e amoral por definição já que nunca foi ou será humano, não estando sujeito à nossa moral. Representa o horror externo ao ser humano. E mostra também que o horror inicial, que causa a posterior maldade do monstro parte dos humanos ao temer e odiar algo diferente.
O Médico e o Monstro 
Representando todos os que ele define como "contos de lobisomem". Nos quais um sujeito é bonzinho e socialmente aceito e. Em certas ocasiões, seu 'Eu' mais primata, reptílico e reprimido, se solta e horroriza. Mas depois, em algum momento, o humano socialmente aceito volta. Ele mostra que essa obra já tem boa parte da psicanálise Freudiana, que seria publicada 30 anos depois. Id, Ego e Superego estariam representados inclusive na figura da casa e da porta por onde o Mr. Hide sai. Ele comenta que até Psicose, do Hitchcock se encaixa como um "conto de lobisomem" com o mérito de ter trazido o "monstro" pra vida cotidiana, alguém normal como nós. Até o momento da escrita do livro pelo menos, a atuação em um filme baseado nesse livro tinha rendido o primeiro e único Oscar de melhor ator pra uma atuação em filme de terror.
"Drácula" 
O "vampiro". Já foi humano mas depois de experimentar o sangue se torna algo além, e que devido a vários fatores (imortalidade, necessidade de alimentação, ...), se torna inimigo. Aqui também entram desejos sexuais reprimidos (por vezes violentos) e tals, bem como a sedução que o lado negro exerce. Não preciso me alongar muito que todos conhecem bem o velho conde.
Só 3 monstros originais?
Esses 3 arquétipos acima na verdade seriam complementados pelo do "Fantasma" que ele opta por não discutir por algum motivo, mas sugere que se leia um tal de "A Volta do Parafuso" de um tal de Henry James, e que eu preciso adquirir urgentemente. Ai sim os 4: Monstro, Lobisomem (representado pelo Mr. Hide), Vampiro e Fantasma, montariam a base "cartesiana" pra todo o resto.
O "Monstro" mais desconhecido dos 3
O melhor dos 3 livros seria o Frankenstein. King discute que, infelizmente, a maior parte das pessoas não leu justamente esse (mesmo os adeptos da literatura sobrenatual). Por isso conhecem apenas o Frankenstein do cinema, aquele que é burro e mal fala, e não o culto leitor de filosofia e com uma fala eloquente que é o monstro original.

Adivinhem qual dos livros citados eu não tinha lido? Justamente o Franskenstein, então a crítica dele quanto a esse ser pouco lido me vestiu a carapuça direitinho. O Drácula já li e reli inúmeras vezes, o Médico e o Monstro tenho uma edição de colecionador bem bacana, com desenhos, cópias de manuscritos, artigos publicados na época e etc.

Como o mundo tá cheio de coincidências, domingo de Páscoa (enquanto ainda lia o Dança Macabra) eu estava esperando o ônibus de Ribeirão Preto pra São Paulo e passei em frente à banquinha de jornal. Qual livro estava destacado em promoção? Frankenstein, claro!. Comprei na hora e já li mais de 100 páginas dentro do ônibus mesmo. Cheguei na parte que mostra o monstro ontem e realmente o discurso dele pra com seu criador é bastante culto e eloquente. Mas parei no primeiro encontro entre os 2, amanhã continuo o livro e vejo onde isso vai chegar. O livro tá interessante até o momento.
Só isso?   
Em tempo: nessa obra ele cita inúmeros outros livros e filmes de horror, inclusive casos da bíblia ou filmes da Dysney (Joãozinho e Maria, por exemplo, sugere canibalismo claramente). Cita vários filmes de horror clássicos, principalmente das décadas de 30 à 50 que dá vontade de (re)ver. Se der ânimo vou tomar nota dos filmes discutidos e baixá-los pra fazer uma imersão num final de semana qualquer (ou vários finais de semana quaisquer). Cita outras vertentes como Edgar A. Poe, e também fala muito do Lovecraft. Essa "resenha" é apenas focando nos 3 livros base citados.
É interessante notar que essa seleção parece retratar, ambivalentemente, a fascinação e o temor com relação ao desenvolvimento da sociedade além de serem histórias criadas e ambientadas no Século XIX; ambientados na Inglaterra; e que se referem de certa forma à tecnociência (talvez com exceção do Drácula nesse último quesito).  Elas trazem uma mensagem "moral" também (bem comum no terror) do tipo: não tente brincar com a natureza, ou se igualar a Deus, ou mesmo dar vazão a seus desejos carnais mais íntimos, isso levará a consequências trágicas pra você e seus familiares.
Os consumidores do gênero terror
Segundo Mr. King conta existem muitos estudos sobre consumidores do gênero terror. Muito mais estudos do que sobre consumidores de outros gêneros. Nenhum acadêmico se propõe a analisar quais motivos levam alguém a gostar de comédia... ou poesia. Existem alguns sobre consumidores de ficção científica, mas nãos são tão abundantes como os estudos sobre quem gosta de terror. Acreditando no autor quanto a esses dados (bom, ele pesquisou muito pra escrever esse livro e dá aula em algumas universidades sobre o tema), dá pra viajar aqui e fazer um paralelo. Nas obras analisadas sempre tem uma parte comum que é o fascinio, a sedução e, muito mais forte que esses, o medo pelo desconhecido, pelo diferente. E uma vontade de trazer o diferente pra normalidade ou pelo menos analisá-lo, dai os "normais" não ficam mais tão incomodados. Será que os consumidores do gênero terror também são, eles próprios, considerados diferentes e marginais nos circuitos de literatura e de cinema enquanto arte (no geral o gênero é mesmo considerado menos "nobre", ou menos sério - junto com a ficção científica que seria o segundo grupo de leitores mais estudado), e são estudadados - por isso mesmo - com mais afinco pelos "normais"? Viagem, né?
Twitter é pros fracos :)
Viram só, através de minha "arte de enrolar" consegui usar trocentas linhas pra um post que se fosse criado automaticamente pelo meu Skoob pra ir pro Twitter diria apenas:
-- "Matheus está lendo Frankenstein, de M. Shelley"
PS.: Post relacionado:  O terror e as origens do cinema

01 abril, 2012

Meus flertes com um novo tipo de heresia

A "Hora do Planeta", em Atenas

Quando escreveram sobre o Ofício do Sociólogo, Pierre Bourdieu e Jean-Claude Chamboredon conseguiram expor, de forma bastante eloquente, a necessidade da Sociologia superar o senso comum, e principalmente o senso comum sociológico. Essa tarefa é mais fácil em alguns casos, e praticamente impossível em outros. Certos assuntos são protegidos ou por uma falta de conhecimento generalizada - é difícil questionar o que não se conhece, afinal! -, ou por estarem muito protegidos por uma aura ideológica que, por definição, proíbe certos tipos de questionamentos, para evitar qualquer ataque à sua lógica interna.

Esse tipo de interdição do questionamento parece ser fundamentalmente relacionado com formas de conhecimento não-modernas (religião, por exemplo). A Ciência e as discussões políticas embasadas nela seriam, em um primeiro momento, muito mais abertas ao escrutínio e discussão sistemáticos, pois o ceticismo seria um pressuposto de sua construção. Na prática, eu creio, a conversa é outra.

O ecologismo e o ambientalismo, e as ações políticas e coletivas decorrentes deles, me parecem ser (apesar de declarações em contrário) especialmente habilidosos em jogar com modalidades não-modernas e não-científicas de construção de consensos. Os elementos morais envolvidos na ciência do aquecimento global, por exemplo, são tão visíveis que chegam a ser descarados: em certos círculos é melhor não questionar o consenso em torno do aquecimento global, sob pena de ser submetido à um doutrinamento bastante eloquente sobre a destruição apocalíptica da terra e o papel do homem em evitá-la!

(não que eu defenda o predomínio completo da Ciência e da racionalidade na vida cotidiana; o meu problema é o evidente paradoxo de um ramo do conhecimento advogar para si a neutralidade da Ciência e, ao mesmo tempo, ser tão abertamente ilógico, sectário e sustentado em auto-referências).

As semelhanças entre algumas religiões e o ecologismo de ocasião são abundantes. O elemento apocalíptico e as noções de causalidade e culpabilidade que apontam para os desastres como resultado direto de alguma violação comportamental do Homem são as facetas mais filosóficas da coisa toda. Mas o fenômeno tem também sua dimensão prática, construída silenciosamente, sem muita gente perceber!

A “Hora do Planeta” e a Sexta-feira Santa são para mim dois exemplos do mesmo fenômeno: ambos tem a função manifesta de reafirmar a adesão à certas crenças, e a função latente de reforçar a coesão social. São ritos que são conduzidos no piloto automático, muito mais como uma série de ações pré-determinadas e imprescindíveis, conduzidas de forma litúrgica, do que como uma oportunidade de reflexão verdadeira sobre os pressupostos do dia sacro-santo. Curiosamente, do meu ponto de vista agnóstico, os sermões religiosos relacionados à Páscoa parecem ter muito mais de reflexividade do que ações como a famigerada “Hora do Planeta”. (ponto para os cristãos!)

A “Hora do Planeta” baseia-se na premissa de que o ato de desligar a iluminação de monumentos e prédios públicos e de residências, durante uma hora, uma vez por ano, é um ato significativo para a conscientização sobre os problemas do uso de combustíveis fósseis (não cabe aqui discutir a total impossibilidade que seria analisar os irrisórios efeitos práticos diretos de tal ato). Do ponto de vista da coerência interna, é totalmente válido e relacionado com o “estilo de pensamento” postulante. Aliás, é o correlato funcional do ato de não comer carne na Sexta-feira Santa, para lembrar do martírio de Cristo - é um ato simbólico, com uma função doutrinária bem clara. Nesse aspecto, como não-praticamente tolerante, eu deveria me ater ao meu ceticismo e deixar cada um agir como melhor lhe aprouver.

O problema é que os ecologismos e ambientalismos são muito mais poupados do escrutínio sistematizado do que as religiões (apesar de serem, na minha opinião, assemelhados, como se fossem parentes distantes). Apesar de uma quantidade considerável de trabalhos sociológicos sobre o tema, ainda é muito difícil ultrapassar o senso comum (e o senso comum sociológico). Assim, iniciativas como a “Hora do Planeta” são vistas (mesmo pelos supostamente esclarecidos praticantes das Ciências Sociais) como ações positivas ou, na pior das hipóteses, como algo a ser ignorado. A capacidade de análise crítica sobre o tema parece ser inversamente proporcional ao apelo e penetração atual do tema em diferentes espaços sociais.

A “Hora do Planeta”, como o próprio nome indica, só é possível em um contexto de globalização - ou seja, a noção da existência de problemas globais e da necessidade de ações globais só é possível em uma sociedade que oferece as condições tecnológicas e institucionais para isso: sem as tecnologias de comunicação e as instituições e organismos “transnacionais” não existiria a noção de problema ecológico global. Não sou exatamente especialista em “globalização”, mas sei que o fenômeno tem consequências práticas, muitas delas negativas, que sequer são problematizadas em ocasiões como a “Hora do Planeta”.

Vejamos: a noção do risco de aquecimento global, quando interpretada superficialmente, dá conta que os riscos seriam divididos de modo indistinto, como se todos os povos e nações fossem igualmente afetados e, portanto, como se todos fossem igualmente responsáveis pelos efeitos negativos passados decorrentes da exploração indevida dos recursos naturais e, em especial, pela mitigação futura dos problemas e desastres relacionados. De fato, os riscos são sempre distribuídos desigualmente e os países e comunidades pobres são frequentemente mais vulneráveis ao risco. No entanto, essas nações e comunidades vulneráveis dificilmente são aquelas que contribuíram de forma direta para a produção dos riscos: um país sub-desenvolvido provavelmente possui, em toda sua história, uma pegada de carbono muito menor do que um país desenvolvido.

Assim, para além da percepção da distribuição “global” dos riscos, se procede uma incorreta distribuição da causalidade (e, portanto, culpabilidade) dos riscos. O movimento retórico é sutil, mas não é desprezável: ao pedir que todos apaguem as luzes, estamos responsabilizando em igual medida e critérios países tão distintos quanto os Estados Unidos e Angola! O “apagar das luzes” pode ser simbólico, mas a mensagem que ele passa e a cultura que ele ajuda a sustentar é absolutamente assimétrica em sua prescrição: retoricamente, exige-se dos países menos industrializados um comportamento de mitigação que os países industrializados historicamente nunca tiveram!

Isso não significa negar a “realidade” dos fenômenos de aquecimento global e similares, mas problematizar a política por detrás da percepção existente sobre eles; sobretudo, é bom lembrar que os países mais pobres são justamente aqueles que tem menos condições de lidar com os potenciais efeitos do aquecimento global, tal qual ele é entendido atualmente. Existem momentos, no entanto, que uma concepção globalizada sobre os problemas ambientais pode ser contra-produtiva. O caráter ritualístico de apagar as luzes na “Hora do Planeta” é essencialmente fetichista, sem função prática direta. Por conta disso, ele pode funcionar como uma “politização desmobilizante”: apagar as luzes torna-se um fim em si mesmo, um ato que tem início e fim demarcados e pouca conexão com o fato gerador da ação. Apagadas as luzes, os cidadãos globais lidam com o problema, para imediatamente esquecê-lo (assim como acontece com a interdição do consumo de carne na Sexta-feira Santa). Ao contrário de manifestações políticas mais tradicionais e diretas (das greves às passeatas nas ruas), onde os posicionamentos políticos são demarcados e os posicionamentos ativamente definidos, as ações como a “Hora do Planeta” esvaziam o tema de qualquer antagonismo ou conflito - o que sobra, a exemplo dos fenômenos religiosos - é uma noção de solidariedade, que em muitos casos escamoteia as tensões decorrentes da vida política. Mais do que isso, o ritual de expiação do apagar anual de luzes dá uma impressão (na maior parte dos casos, eu suponho, falsa) de comprometimento. Ao politizarmos o tema desse modo específico, estamos na verdade esvaziando seu significado: paradoxalmente, ao apagar as luzes, todos nos responsabilizamos, mas em ninguém recai a culpa.

A atribuição de culpa, fenômeno humano tão universal (Mary Douglas que me corrija), fica reservada então para a dissidência. Não agir ecologicamente hoje significa, inevitavelmente, comprometer o futuro comum. Por isso, a adesão aos cânones do ecologismo normalmente não permite muito questionamento e interpretações divergentes. É claro que o ecologista e o estudioso possuem um repertório conceitual suficientemente elaborado e amplo para expandir e até mesmo suspender a crença nos limites conceituais de sua atividade, como é esperado em uma discussão produtiva em um contexto democrático. Mas o leigo sempre vai ter acesso à versão mais estável e, portanto, mais conservadora da teoria científica. Isso, aliado aos espetáculos midiáticos como a “Hora do Planeta” produzem uma ignorância involuntária, cujos efeitos podem os mais curiosos: admita, não é preciso procurar muito para encontrar alguém que apague as luzes conforme o pedido da WWF, mas que insista em sair de carro para comprar pão! Ou pior: não são raros os indivíduos que aderem à causas globais e são completamente alheios à causas locais, ecológicas ou não, que o afetam diretamente (num desacoplamento entre tempo/espaço característicos da modernidade e suas consequências como - vejam só! - a globalização! Não é, Giddens?).

Para todos aqueles que se consideram pessoas ecologicamente conscientes, meu pedido de desculpas pelas profanidades expostas acima. Sim, eu sou um herege. Mea culpa, mea maxima culpa. Acontece que estou professando aqui meu outro credo, as Ciências Sociais, e me incomoda ver um assunto tão importante ser tratado de forma tão leviana. Não se trata apenas da “Hora do Planeta”, mas de uma postura geral sobre os problemas ambientais: atualmente, negar a ação humana como causa do aquecimento global é tão vergonhoso como negar Cristo por três vezes! Assim, meu esforço, antes de desrespeitar um tipo de pensamento, é para compreendê-lo melhor e se possível reforçar seus argumentos. Em linhas gerais, digamos que compartilho da causa, mas não das formas de mobilização adotadas. Em especial, argumento pelo meu direito de ser um dissidente em um contexto democrático, sem necessariamente ser tratado como um herege.

De qualquer forma, “folgo em saber” que ao menos não serei queimado vivo, como as bruxas e hereges de outros tempos. Afinal, todos ecologistas sabem que as fogueiras destroem madeira e aumentam os problemas com o efeito-estufa! Por outro lado, também os churrasquinhos humanos de outrora tinham funções sociais que iam muito além de acabar com o problema, em si. Assim como a “Hora do Planeta”, também serviam para conscientizar! “Ou não” ;)