12 março, 2013

Lei da Homofobia, Igualdade e Aristóteles


Endireita, Brasil!

Tava lendo as pérolas ideias no site do Emdireita Brasil (nem pergunte o que me levou a isso) e achei esse trecho sobre a "ditadura gay" e a PL 122, a tal da Lei da Homofobia.

"Esses ativistas gays não têm fundamentos válidos para convencer as pessoas sobre sua ideologia. Mas querem impor essa ideologia homossexual, à força, mediante ofensas e agressões, como na parada gay e em tantas outras ocasiões e que continuarão acontecendo. O PL 122 tem o objetivo de amordaçar e de impor uma ditadura gay, transformando em criminosa qualquer pessoa que criticar essa ideologia. Esses ativistas gays, que nos atacam, querem impor uma ditadura gay aos cristãos e ao povo brasileiro, que não aceitaremos."

Tem beeem mais, mas quero discutir a interpretação da lei aqui nesse post e não o resto, muito menos religião. Quanto aos comentários então, melhor nem falar, né? Dai fui a outras mídias e dei uma olhada básica nas críticas à lei. Sim, foquei apenas nas críticas, queria ver até onde essa idéia de ditadura gay estava chegando. E é impressionante.

O texto do projeto de lei

Antes de criticar as críticas, melhor apresentar o projeto pra quem ainda não teve o prazer.

O projeto de lei na íntegra está disponível pra leitura, e nem é muito grande, dá pra ler em minutos. Quem quiser confirmar o que vou escrever ou tirar suas próprias interpretações, à vontade: PL 122 no site do senado.

Vou reproduzir um resumo meu aqui, mas tive que digitar e não dar copy/paste (porque o PDF tá na forma de imagem e não de texto) então NÃO está exato, digitei na correria, comendo palavras. Mas o texto original tá ali em cima, no link.

Senão vejamos... basicamente a proposta PL 122, que tenta promover a ditadura gay tipicar o crime de preconceito quanto a sexo e orientação sexual faz 3 coisas: 

  1. Altera a Lei nº 7.716, que define crimes resultantes de preconceito de raça, cor e religião. Essa nova proposta entra adicionando os itens sexo e orientação sexual às penas que já existiam pros outros casos (que já eram considerados preconceitos - ou seja, cor, raça e religião).
  2. A proposta também altera o Artigo 140 do Código Penal, nos mesmos moldes: adicionando o item orientação sexual às penas que já existiam pros outros casos
  3. Por fim, a proposta altera o Artigo 5 da CLT pra incluir nos casos trabalhistas essa nova classificação de preconceito, também onde já havia legislação para os outros casos de preconceito.

Dai o texto da proposta mostra item a item tudo que vai ser alterado, ponto a ponto e vírgula a vírgula. Em linhas gerais essas alterações tornam ilegais certas manifestações de preconceitos agora também no tocante à orientação sexual. Manifestações tais como:

  • não negar emprego,
  • não pode negar crédito,
  • não promover perda ou cargo de função pública,
  • não pode cometer ação violenta, constrangedora, intimidatória ou vexatória devido à ser desse grupo,
  • não pode sobretaxar hotéis e serviços,
  • não pode negar matrícula em instituições de ensino,
  • etc.


Tá tudo lá no texto da lei.

O único item acrescentado *de fato* (ao invés de só estender itens já existentes para serem válidos também para esse tipo de preconceito) é o Artigo 7. Esse altera o Artigo 8 da Lei 7.716 incluindo os itens mais ou menos assim:

"É crime proibir a livre expressão e manifestação de afetividade do cidadão homossexual, bissexual ou transgênero, sendo estras expressões e manifestações permitidas aos demais cidadãos ou cidadãs".

Sacaram? Agora Passa a ser crime proibir a manifestação de afetividade ao homossexual, SE ESSAS FOREM PERMITIDAS NAS MESMAS CONDIÇÕES AOS HETEROSSEXUAIS. 

Aparentemente não tem nada de: "agora os gays vão sair pelados estuprando todo mundo". 

Se é proibido pra hétero, vai ser proibido pra homossexual. Se é atentado ao pudor pra um, vai ser atentado ao pudor pra outro. De novo, em linhas gerais as mesmas leis que antes protegiam a religião ou raças agora se aplicam aos homossexuais. 

Se isso é uma ditadura gay, então tem que acabar com todos os mecanismos contra outras discriminações também? Só que não.

Muito blog por ai aproveita que as pessoas não tem o hábito de ler os textos originais e saem dando interpretações próprias que são lidas e repassadas com muito mais força do que a proposta verdadeira. Alguns críticos nessa linha contra a ditadura gay parecem-me tão inseguros que tem até medo de passar a gostar de homem se uma lei for assinada.

A igualdade aristotélica

Outro tom de crítica que li nessas pesquisas, e que não ia pro lado do “medo da ditadura gay”, era a crítica baseada no argumento de que uma lei favorecer um grupo, ou uma minoria, ela é por si só preconceito. A lei deveria tratar a todos por igual. 

(Aqui abro um parêntese: leis de preconceito não favorecem minorias. Favorecem seres humanos que sofrem preconceitos. No caso de mulheres ou de negros no Brasil, que também tem leis específicas devido à preconceito, são as maiorias que estão sendo favorecidas pelas leis)

Esse tipo de argumento, da lei desigual, eu vi muito no Facebook nessa última semana, em posts de amigos, devido a discussões surgidas por ocasião do dia internacional da mulher. Gente falando que não devia ter nenhuma lei específica, como a Lei Maria da Penha ou mesmo distinções em leis trabalhistas, isso seria preconceito. "Agressão é agressão", dizem, não importa contra qual grupo.

Isso me remeteu a um conceito, a “igualdade aristotélica”

Uma vez, ainda no meu tempo de Instituto Eldorado, houve uma palestra sobre leis e o palestrante comentou que é um erro você pensar que a lei trata todos por igual. Que na verdade ela trata diferente os diferentes Lá no Eldorado tem um ciclo com palestras não necessariamente técnicas muito legais, trazem especialistas em vários temas, com cacife mesmo, pra discutir.

Na época da palestra falou-se sobre temas mais ligados ao mundo empresarial do que a direitos humanos. Por exemplo, a CLT, que dá poder ao empregado pra balancear o poder (financeiro, coercitivo, etc.) já existente nas corporações. Outro exemplo é o Código de Defesa do Consumidor, que dá poder ao consumidor. Nesse caso do código de defesa do consumidor, por exemplo, o ônus da prova é da defesa, pra balancear o poder dos envolvidos. Tem o fato de as leis que regem o aluguel defenderem o inquilino com mais intensidade do que quem o quer despejar. Tem detalhes e “poréns” nesses itens, resumi muito, mas não é o foco mesmo. 

Achei isso curioso isso, de a lei tratar diferente os diferentes, pra mim foi uma nova perspectiva pra ver essas coisas. E fui ler sobre o assunto. Aprendi que esse conceito de igualdade baseado em diferenças vem de longe, lá dos filósofos gregos, em especial o Aristóteles (o cara bonitão da imagem lá no início desse post). Foi ele que disse que igualdade é tratar diferente aos diferentes. O conceito acabou sendo chamado de Igualdade Aristotélica.


Igualdade tradicional versus igualdade aristotélica

Pela Teoria do Direito Puro, é assim que interpreta a igualdade nos textos da lei:  

A igualdade dos sujeitos na ordenação jurídica, garantida pela Constituição, não significa que estes devam ser tratados de maneira idêntica nas normas e em particular nas leis expedidas com base na Constituição. A igualdade assim entendida não é concebível: seria absurdo impor a todos os indivíduos exatamente as mesmas obrigações ou lhes conferir exatamente os mesmos direitos sem fazer distinção alguma entre eles, como por exemplo, entre crianças e adultos, indivíduos mentalmente sadios e alienados, homens e mulheres, ou seja, o ser humano é único em sua individualidade.”

No caso específico dessa lei que motivou o post, que criminalisa a homofobia, uma vez vi uma entrevista com uma delegada aqui de São Paulo, por ocasião do casal homossexual que foi atacado na Paulista por um grupo que chegou e quebrou uma lâmpada neles. Embora as imagens mostrassem crime de ódio, ela disse que como nossa lei não tipifica homofobia como crime então ela teve que tratar como agressão simples, nem lesão corporal foi porque não houve nenhuma sequela física. Seria como, sei lá, empurrar qualquer um na rua. E ela comentou algo na linha de que (não lembro as palavras exatas) isso era triste, pois por um lado (a) impede uma ação tática da polícia contra grupos de ódio que não são reconhecidos na lei embora ela soubesse que existam; e, por outro lado, (b) porque uma ação conjunta para atingir o fim do preconceito deveria passar por, entre outros itens (como educação, talvez o mais importante), um reconhecimento legal e possíveis punições para algumas ações e crimes ligados ao preconceito.

O humor... ahh... o humor

Quase que escrevi “O horror” nesse título acima, depois mudei de ideia. 

Essa lei específica, até onde vi, não fala nada de humor ou de censura. Se por acaso interpretações mirabolantes podem ser feitas (não fiz esse exercício) as mesmas já podiam ser feitas hoje sem a nova lei, mas com os grupos já defendidos pelas leis de preconceito existentes. Mas aparentemente cada um continua podendo fazer humor como quiser e como sempre fez. Ao mesmo tempo, cada um também continua podendo reclamar do humor que ouviu como quiser.  
 





Nem vou me alongar quanto às tênues e polêmicas relações entre  humor e preconceito. Isso daria um texto maior que esse, então vou recomendar (de novo... já recomendei esse texto várias vezes) o texto de alguém que já falou muito bem sobre isso, e cujas idéias são praticamente as minhas: Carta Aberta aos Humoristas do Brasil

Em linhas gerais ele diz que não quer impedir ninguém de escrever o que quer nem nada parecido. Mas ele passa mais uma menos a ideia de que temos alguma responsabilidade sobre as ideias e ideologias que repassamos por ai. 

Podemos pensar sobre isso ou não, podemos ligar pra isso ou não dar a mínima, podemos até concordar com a ideologia sendo passada. Mas o ponto é que se estamos passando uma ideologia, temos sim alguma responsabilidade quanto a isso. 

Dai ele continua umas análises e faz um apelo, e um desafio (usa esse termo mesmo, desafio) aos humoristas: tentar fazer humor sem repassar preconceitos. Ou mais: fazer humor lutando contra preconceitos. 

Olhem de novo o quadrinho acima, do Laerte! Ou assistam ao Comédia MTV. Ou os quadrinhos citados como exemplo no texto que acabei de sugerir. É possível esse tipo de humor. Difícil, mas possível. 

Enfim... é bacana o texto. E se alguém for ler, recomendo fortemente se atentar pras legendas das imagens que ele usa como exemplos.

E temos mesmo preconceitos e discriminações?

Por fim, o terceiro e último tipo de críticas que li na minha humilde “pesquisa”.

Recapitulando antes os tons de crítica que me chamaram a atenção:

  1. Críticas à lei baseados em: "Agora todo mundo vai virar gay! Socorro!"
  2. Críticas à lei baseados em: "Mas leis defendendo um grupo ou minoria são mais racistas ainda, tem que tratar todos iguais".
E agora o último:
  1. Críticas à lei baseados em: "Não tem tanto preconceito no Brasil, isso é besteira de estudante de sociologia."
Pois é, li muitas críticas à PL 122 no sentido de que não há isso de racismo, ou machismo, ou homofobia, ou essas coisas feias todas. Isso tudo seria coisa de idiotas que não tem o que fazer e ficam procurando pelo em ovo. 

Vo deixar pra cada um pensar nisso (quem sou eu pra "deixar" alguma coisa, né?). Mas como eu já tenho minha opinião, vou jogar uns dados ao acaso aqui pra influenciar mesmo :)

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Dez mulheres são assassinadas por dia no Brasil, colocando-o no 12º lugar no ranking mundial de homicídios contra a mulher.

Uma em cada cinco mulheres já sofreu algum tipo de violência de parte de um homem, em 80% dos casos o seu próprio parceiro. 

Em 2011, o ABC paulista teve um estupro (reportado!) por dia

Na cidade de São Paulo, uma mulher é agredida a cada sete minutos.

Em Campinas, as mulheres estavam solicitando linhas de ônibus só pra elas, com medo da violência. O mesmo tipo de ação já existe no Rio, no caso para vagões no trem.
 
Uma vez, num painel sobre mudanças climáticas aqui na Fapesp vi um dado interessante: mulheres morrem muito mais de seca e fome do que homens. Mas muito mais mesmo. E os estudos apontam que a vulnerabilidade é social e não física.

Sem contar os salários, né? Pra um mesmo cargo, o salário das mulheres é historicamente mais baixo. E recentemente a diferença aumentou.

Entre 2002 e 2007, o número de homicídios cujas vítimas eram jovens negros aumentou 49%

De cada 100 mil habitantes, morrem por homicídio 30,3 brancos e 68,5 negros. 

A probabilidade de ser vítima de homicídio é 12 vezes maior para adolescentes homens e, dentro desse grupo, quatro vezes maior para jovens negros

De cada três jovens assassinados, dois são negros. A população negra teve 73% de vítimas de homicídio a mais do que a população branca.

Mesmo sem ir pra dados de jornal... Refletindo minha experiência de vida, eu fiz uma boa faculdade, e tenho mais de 14 anos de experiência profissional em grandes empresas de tecnologia. Acho que conto nos dedos das mãos quantos negros já vi trabalhando nesses ambientes. Ou estudando nas filas da minha faculdade (e olha que as turmas eram de 90 alunos). Façam mentalmente a comparação vocês também, olhem nos shoppings, nos empregos, nas faculdades. Agora pensem que a população negra ou parda é maioria.

Em 2010, foram mortos 260 homossexuais no Brasil, 62 a mais que em 2009 (198), um aumento de 113% desde 2007 (122). Nos EUA, com 100 milhões a mais de habitantes, moram mortos 14. 

Um homossexual brasileiro tem 785% mais chances de morrer vítima de violência que um norte-americano. 

As coisas parecem estar piorando: só nos primeiros dois meses de 2012, foram 80 assassinatos confirmados. Mantido esse padrão, teremos 500 homossexuais assassinados até o final de 2012. 

Aparentemente nenhum país do mundo mata tantos homossexuais quanto o Brasil.

Chega. Fim dessa listinha, se ficar caçando na Net isso fica virtualmente infinito.

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Voltando...
 
Complementem os exemplos acima com suas experiências pessoais no dia a dia. Pensem tanto no quadro social quanto no tipo de piadas que fazem ou ouvem. Pensem no que dizem seus pais, avós, tias e tios. Lembrem da população retratada nas novelas e nos filmes (coadjuvante cômico caricaturando a classe não vale, é quase tão nocivo quanto não ter). Leiam os comentários nos sites de notícias. Tentem imaginar o que é estar andando na rua e ver as pessoas desviando, ou então se aproximar de um carro no semáforo e ver os vidros elétricos subindo.

Pra ajudar (dizem que uma imagem fala mais que mil palavras, né?) Dá uma olhada na imagem abaixo, visão aérea de uma micareta no carnaval de salvador. Dá pra perceber qualquer lógica em termos de cores?




Dai cada um responde pra si mesmo, nem precisa ser em voz alta: existe mesmo racismo, homofobia, machismo e outros preconceitos no Brasil, a ponto da lei precisar reconhecer isso? Ou é tudo "viagem de intelectual"?


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