28 fevereiro, 2014

Um retorno à idade média


Abalado

Ler comentários de notícias sempre nos leva a certo abalo, mas essa semana estou especialmente abalado. Por causa dos justiceiros. Na verdade não é por eles, é pelo incentivo a essas ações por parte de uma jornalista. Não, ainda não é isso... Estou abalado é pela reação de parte das pessoas quanto a discussão surgida devido ao comentário da jornalista. É, acho que é isso.

Nada de novo no front

Justiça com as próprias mãos não é novo, né?  Deve ser mais velho do que a sociedade organizada. Aliás, nesse contexto, os “moderninhos” de plantão que acham que estão proferindo novidade, sendo "inovadores", tirem o cavalinho da chuva. Essas ações são muito, mas muito velhas. 

Antiga aula de filosofia

Eu tive um professor de filosofia no colégio, Jean, hoje falecido. Ele abriu minha mente pra várias coisas, e foi responsável por grande parte do que sou hoje. Se for dizer tudo que aprendi com ele já usaria vários posts, então vamos focar. Ele mostrou um vídeo de um linchamento uma vez, pra discutirmos em aula. O cara era ladrão, tinha roubado uma senhora. No início da aula muita gente achava normal ele ser "punido pela sociedade". Dai ele nos passou o vídeo. O cara foi queimado, jogaram gasolina nele. O vídeo mostrava claramente os braços se fundindo ao corpo com ele ainda vivo. E mostrava as pessoas de bem, inclusive crianças, ainda cutucando ele (vivo). Um moleque começou a enfiar um graveto no olho. Não sei exatamente detalhes, mas foi em Minas, e antes de 1994 (quando ele nos mostrou o vídeo). Opiniões mudaram depois disso na sala de aula. O vídeo não é público, era da polícia e de alguma maneira a fita VHS chegou às mãos desse professor. Engraçado que pra nós assistindo as opiniões mudaram, mas as pessoas do vídeo entravam num frenesi. Ódio e raiva reprimidos, comportamento de massa, aprovação dos atores sociais presentes, sei lá... Não sou psicólogo, mas eles estavam gostando do que faziam.

De volta ao presente

Corta pra 2014. Alguém comete um roubo e a população lincha. Não chega a ser tão violento quanto o que vi, foi “só” algumas porradas, uns cortes na orelha e depois deixar amarrado nú em público. Nada de novo aqui, isso ocorre direto. Dai uma jornalista faz um incentivo disso no ar em horário nobre. Algumas pessoas reclamam, e começa o ciclo de discussões tão comuns em tempos de Internet. E com o ciclo de discussões acirrado, jornais começam a buscar clicks mostrando mais casos análogos. E a população, que também quer seus 5 minutos de fama (como já previu Andy Warhol), se empolga mais e começa a linchar mais e a jogar no Youtube, pra ganhar mais clicks. Fiz a experiência hoje, procurei por linchamentos no Youtube. Tá bombando! Nas notícias também.

Os comentários... ahhh.... os comentários

Dai você os comentários dessas notícias e vídeos. Várias “pessoas de bem” legitimando esse comportamento. “Se a polícia não age, a população tem que agir”. Li gente usando como embasamento teórico os quadrinhos do Batman, e recebendo várias curtidas por isso.

E se você se posiciona contra a tortura e o linchamento então? Dai você é a favor de bandido. “Leva pra casa e adota”, como disse uma repórter em horário nobre. Pera ai, não tem nada a ver uma coisa com outra. Ser contra um crime não é ser a favor de outro, mesmo que esse outro, na cabeça dos criminosos, seja uma maneira de acabar com o crime. Hein? Mais crimes pra acabar com crimes, menos estado pra acabar com a falta de estado, mais violência pra acabar com a violência? Sim, essa é a lógica predominante. Pessoas inteligentes fingindo não entender que ser contra tortura não é ser a favor da ação cometida pelo torturado. E vem as piadinhas, como o “direito dos manos” (essa já cheia de preconceitos embutidos). Me parece caso típico de dissonância cognitiva, só pode ser.

E dessa vez não é só minha visão deturpada pela minha rede de contatos e leituras, pelo menos não segundo a pesquisa de um grande jornal:



Acho isso tão deturpado

Por conta de um crime pequeno, um furto, pessoas "de bem" cometem crimes bárbaros: tortura, espancamento, beirando o assassinato puro e simples. Desde quando um crime justifica outro, muito mais bárbaro? E ainda se dizendo em nome da justiça?

Olha esse caso, também digno de elogios nos comentários:


"... morador de rua foi agredido por um grupo de pessoas após furtar um frasco de xampu num supermercado. O homem foi arrastado para a rua e agredido a socos, chutes e pauladas. O dono do estabelecimento e alguns funcionários tomaram parte nas agressões. Moradores do bairro, entre eles menores de idade, se juntaram aos agressores. Um deles quebrou uma garrafa na cabeça da vítima. Policiais encontraram o morador de rua desacordado e ensanguentado. O homem, que não portava documentos, continua internado com afundamento no crânio... "


Vivemos um tempo cada vez mais estranho e preocupante. Como disse um amigo essa semana: "Essa galera não sabe fazer conta, também. Por mais que você despreze COMPLETAMENTE a vida do cara: qual o custo de um xampu (vá lá, o mais caro de todos sai por quanto? R$ 20?), e qual o custo de uma internação por afundamento de crânio ao pagador de impostos no SUS?"

E sobra gente torcendo para que isso se torne comum. “O cara do champu foi uma vítima inocente da raiva reprimida, acontece, faz parte do processo.”

Incoerência básica número 1: mais crime pra acabar com o crime:

Roubo é crime. Tortura é crime. Agressão física é crime. Logo, deixo esse quadrinho.

Crédito: Site do "Os Malvados"


Incoerência básica número 2: Falta estado? Vamos resolver com menos estado!

A galera parte de uma premissa, provavelmente correta, apontando a sensação generalizada de que o estado (judiciário, polícia, executivo, legislativo, etc.) não ocupa esses espaços, de que estamos esquecidos e deixados aos nossos próprios meios. Dai, inflamados por uma jornalista de horário nobre, defendem a melhor solução: vamos fazer a justiça com nossas próprias mãos. Não veem a incoerência aqui? Vivemos numa sociedade democrática, com leis e regras. Em teoria, elas deveriam nos defender a todos. Se não defendem, vamos lutar por isso, claro. Mas descumprindo mais leis e regras? Ignorando os sistemas? Cometendo crimes muitas vezes mais bárbaros que o que levou ao linchamento?


Não tem reposta rápida e fácil pro fim da violência urbana. Provavelmente ela nunca acabará, dados os criminosos patológicos. Grande parte dos crimes, contudo, talvez seja minimizada com políticas públicas contra desigualdade e má distribuição de renda, pela melhoria no sistema carcerário, melhor treinamento e principalmente melhores salários aos policiais, agilidade no jurídico, eu acredito também na desmilitarização da polícia, mas esse ponto é bem polêmico. Educação e emprego também ajudam. A idéia é, fortalecendo as estruturas que nos diferenciam da barbárie ou da idade média, e não voltando a elas. Como disse outro amigo, a respeito disso:
“(se é pra voltar pra idade média) Eu sugeriria que as pessoas que gostam dessas soluções medievais começassem a cogitar outras práticas semelhantes como, digamos, conceder a primeira noite de núpcias das noivas para um governante, ou tornar-se escravo de alguém para pagar as dívidas. Já pensou? Algum voluntário? Não, né?”



Independente de leis e regras, pra mim é difícil entender como pessoas se juntam em bandos (pais de famílias, crianças, adolescentes,...), amarram outro ser humano num poste, e começam a bater até quase matar. Alegando que isso é "justiça". Isso não é justiça, isso é caos. Isso sim é ausência de estado, de lei e de justiça. O Brasil não é violento só por que temos tantos crimes, mas também porque gente de bem começa a "entender" e justificar esse tipo de ato. As pessoas que acreditam no linchamento precisam perceber que a barbárie é a ausência de leis.

E os próximos passos?

E dai? Vamos linchar quem comete crimes e boa daqui pra frente?

E se julgarem errado (como acontece todos os dias em nosso jurídico)? E se confundirem nossos filhos com um "bandido" (se você é branco e classe média é difícil, mas não impossível). E se nos confundirem com um ladrão e - sem chance de defesa e sem processo legal - as turbas saírem nos "justiçando". Dai seria apenas uma casualidade, como o cara do champu? Que “faz parte do processo”?

Se roubar um xampu ou ser suspeito de roubar uma casa (ou roubar a casa) já é motivo pra afundamento no crânio e garrafa quebrada na cabeça, não quero ver quando os justiceiros começarem a pegar outros crimes. Coisas até mais graves e com mais potencial de prejudicar a sociedade. 

E se revolvermos punir, por exemplo, crimes graves como: dirigir em alta velocidade ou depois de beber, ou no acostamento. Sonegar imposto, agressão, discriminação, preconceito. Ou nem tão graves, mas que envolvem maior valor, como roubos virtuais de coisas muito mais caras (como filmes e músicas). Onde se deve parar? E quem sofre bullyng por anos, pode pegar uma arma e sair matando na escola, como vemos nos EUA de tempos em tempos? Ele também está retribuindo um crime, fazendo justiça com as próprias mãos. E as famílias dos “justiçados”, podem pegar os justiceiros depois e linchar também (afinal, por todos os critérios, eles também cometeram um crime)? Dai a gente começa um círculo vicioso.

Vamos entrar nesse círculo e voltamos ao velho oeste! Legal, né?.  Não, na verdade não é bem assim, porque o “faroeste” é um momento que precedeu a implantação das leis. Nem nazismo, como ouvi pessoas falando, acho que se encaixa. O nazismo foi cruel, mas ordeiro. Muito ordeiro e organizado. Se entrarmos nessa onda, será barbárie mesmo.

E, de novo, muita gente torcendo pra isso. Essa é a solução da gente de bem. Gente que, claro que nunca pegou um carro embriagado, nem nunca ultrapassou a velocidade permitida, e que sabe exatamente em quem votou e por quê.

O dia que for com você você vai ver

Não, nunca enfrentei nada que comprometesse minha integridade física, ou de familiares. Mas sim, já tive tudo roubado, mais de uma vez. Foi daquelas situações de ficar trancado no banheiro, levar coronhada na cabeça, arma fria tocando na testa. E numa ação de 40 minutos perder TUDO que tinha reunido em mais de uma década de trabalho (carro, roupas, livros, patins, violão, dinheiro, presentes, lembranças, fotos, documentos, CDs, computadores, ...). Enfim, fiquei só com a roupa do corpo e o que tinha na conta. Demorei anos pra adquirir meus pertences de novo. E isso aconteceu não uma, mas duas vezes (na primeira eu não tinha muitos bens, era início da faculdade e tals). Já vi um irmão apanhando na rua. Já vi meu mestre de capoeira sendo esfaqueado na minha frente (e ajudei a levá-lo ao hospital depois). Então não me venha com o argumento de que eu pensaria diferente antes de me conhecer.

Se você acha que to defendendo bandido, você não entendeu nada

Se ainda tá pensando em me xingar e me mandar "adotar um bandido", primeiro pergunte: por que alguém, em sã consciência, seria a favor de assaltos, homícidios, latrocínios e furtos? Ou você me acha louco, e nesse caso prefiro nem discutir, ou você deveria ter cuidado em começar a ofender sem entender o argumento do qual discordou. E sim, você tem o direito de ficar puto se foi vítima da violência, eu também fiquei. 


Essa reflexão é no tocante a opiniões recentes que li em favor de tortura como punição, e da ausência de qualquer processo legal ou investigativo, como solução para o problema da violência. E que acham que isso vai resolver!

Nenhum comentário:

Postar um comentário